terça-feira, 20 de junho de 2006

A medo

Hoje choveu o dia todo. A medo, deixei as águas furtadas da cabeça entre-abertas e sequei o sol na gaveta do peito.




Bem sei que sendo português, vou esbarrar com o politicamente correcto, mas cá vai (a medo):
Estou feliz.
Posso, mas não me quero queixar. Dá muito trabalho aos escritórios do meio dos nervos.
Ouço fado, mas com os vincos certos na cara.
Tenho dormido bem, graças a uma vasta equipa que me arrasta os olhos até ao rés-do-nada.
Já são horas. Quais? Não sei, é o que se diz nestas alturas.
Visto-me com roupas de dormir, daquelas que dão vergonha aos acordados.
Pais insistem (ou talvez só a mãe): "não deites fora essa t-shirt, aproveita que dá para dormir".
Dormir com uma t-shirt boa, pode, em muitos casos, fazer dói-dói no mais profundo sentimento do Dr. Ó-ó.
Era aborrecido.
Sempre imaginei o Dr. Ó-ó como um indivíduo de rastas,tocador do "mai" bonito djambé do Adamastor e a comer sabonetes de haxixe pra queimar o tempo.
O Dr Ó-ó não roda o sabonete (leia-se como nota de roda-texto)
E faz-se apresentar sempre, mas sempre, com uma t-shirt velha.
O Dr Ó-ó não é beto. Olha betinhos pró Dr. Ó-ó!
Raramente dormimos com uma camisa Gant ou Façonnable. E se o fizéssemos, ia-mo-nos dar mal.
Não queremos isso.
Sapato de vela azul escuro com sola branca? Não me parece. "Meiínha" velha.
O Sr Ó-ó não brinca: Trabalho é trabalho e bardamerda caladinhos.
Visto a tal t-shirt (viu dr ó-ó, há aqui uma generosa dose de respeito)

Apago a noite num cinzeiro, daqueles que guardam o que os pulmões não querem.
Tranco os olhos. Dou duas voltas, e deixo a chave encostada aos teus dedos, não te vá dar uma aflição a três terços da noite.
Durmo o número de horas desde sempre acordado com o centro das costas: demasiadas, mesmo para quem dorme demasiado.
Sonho.
A cores, ultimamente. Não porque seja uma exigência minha, que em matéria de sonhos sou um rapaz modesto, mas porque o preto e branco se esquece da tua cor.
Acordo com os bons dias sentados nos olhos.
Abro o chuveiro e dou de beber ao corpo e meio. O meu.
Desço, queimo o peito da língua com cinco tragos de café e escondo o açúcar na cave da língua, para o que der e vier.
Escondo a chave do carro no bolso, rasgo a porta de casa e dou de caras com a metade quente do sol.
Embrulho-o e guardo-o na terceira gaveta.




Hoje choveu o dia todo. A medo, deixei as águas furtadas da cabeça entre-abertas e sequei o sol na gaveta do peito.